Por Wagner Schwartz, entorno de Sobre Expectativas e Promessas, de Grupo Cena 11 Cia. de Dança.
Ontem assisti a uma peça transparente sobre o universo das coisas. Elas tinham um corpo com dois nomes. Entre um e outro haviam milhares de sinais de ida e volta, de partida e chegada, etc. Precisei deixar um continente para escrever sobre eles e, quando aterrissei, percebi que não estavam por ali. Tinham ficado entre dois mundos. No meio do Oceano Atlântico.
Sobre Expectativas e Promessas tem um Q de permissão, melancolia. Não separa caminhos, porque o mar já foi aberto por uma vez, na história e, por outra, no pensamento. Deixa o futuro para o final, não está nem aí. Falo de uma peça construída por duas pessoas; na realidade, uma raposa e um cervo. Ambos com qualidades distintas; mas não se pode julgar o que está em cena, seria constrangedor. Aprenderam a ser como são. Seus universos, quase-selvagens, podem ser vistos, apenas, de longe.
Daqui onde estou, vejo o cervo amplificar um determinado ruído para acompanhar a raposa. Ela se manifesta. Parece estar sozinha. Ela se vinga de quem imagina que não existe presença por ali, enquanto incorpora sinais, na frente e aos lados de quem a observa. Ela os dobra, joga fora, abandona, equalizando sua forma de movimentar com o pensamento. Ela experimenta um monte de coisas que não se pode descrever, só olhar.
O cervo some de vista. No fim dos dias, a relação entre eles é relativa. Algumas pessoas poderiam chamá-los de Principal e Coadjuvante; outras, talvez, Maior e Menor – essas formas de nomear as figuras do mundo variam de acordo com as preferências sazonais. Como, neste relato, sou eu quem estou narrando, prefiro diferenciá-los assim, Raposa e Cervo, porque, não se pode negar, um foi feito para o outro e ambos existem mesmo.
O Cervo solta um berro para a Raposa lidar com ele. Ela se desespera, fica brava, encontra aquilo que faz sentido dentro do seu corpo e joga para fora. O Cervo amplifica a atividade sonora da Raposa, por ser ininteligível a força daquilo que sai. Depois de tudo o que foi feito, fica impossível dizer: eu não ouvi (não entender pode ser, também, uma opção sazonal). Cheia de histórias que nascem espontaneamente, a Raposa pega o cabo da coisa que a amplifica e a lança de um lado para o outro, dizendo: isso aqui é meu e de mais ninguém (mas sou eu quem entendi isso). O Cervo não se surpreende, parece acostumado aos acessos sentimentais de sua amiga.
Enquanto a noção de tempo vai se construindo, existe uma luz que opera nesse lugar. Complexa ou talvez, prolixa. Ela atinge o espaço sem nenhuma projeção, não foi desenhada para iluminar o universo das coisas, como quando está de noite e é preciso acender uma ou duas velas para se aproximar de um determinado assunto. A luz, na natureza, visita seus buracos e por vezes os ilumina. (Olho para o lado e vejo que a Raposa insiste, ainda, em falar e falar fora do foco; mas, agora, sem abrir a boca.)
Por fim, vejo um objeto suspenso, indicando a frequência sonora de cada movimento. Quem se prende a ele, pode até vir a crer na fertilidade do encontro entre o que se pensa e o que o outro está pensando; mas a coisa, por ser muito iluminada e certa de seu compromisso com o mundo, deixa índices de um grande enigma, se o que se viu foi a revelação de um segredo ou se o que aconteceu pôde aliviar o ato de pensar.
Por caçarem apenas o suficiente para alimentar um animal, as raposas são predadoras solitárias e não se reúnem em grupos.
Wagner Schwartz trabalha com arte contemporânea, dança e literatura, entre São Paulo e Paris. Seus projetos problematizam as relações artísticas e seu percurso.