Por Paula Pi, entorno de Sem Título, de Clarissa Sacchelli.
procurei um cantinho ao sol no jardim mais bonito da cidade. o dia está tão bonito e há muita gente pelas ruas. sinto saudade. vontade de conversar por horas a fio. parti com tantas coisas a dizer… por ora, digo que não te contarei dos meus dias por aqui. não hoje. essas coisas por dizer atravessaram o oceano comigo e ainda povoam os meus dias. hoje te conto umazinha delas. talvez não a mais agradável, mas necessária! pra mim pelo menos. você vai entender. começo assumindo que me sinto culpada pela correria antes da viagem pra cá ter me engolido e me impossibilitado de conversar mais com você depois da experiência fatídica da bienal de santos (está posto o assunto à mesa!). sei que você precisou de mim e eu não estive lá para te ouvir. pior, acabei vindo embora sem te explicar direito os comentários que fiz sobre seu trabalho e tenho medo de ter sido mal interpretada. sinto-me egoísta por não ter tomado o tempo de compartilhar meus pensamentos com você. espero que não seja tarde demais.
então cá estou eu, sentada neste lindo jardim, aproveitando o domingo pra resolver essa questão de uma vez. vamos lá. espera! preciso antes que saiba que o quê será dito há de ser com carinho, cuidado, desejo de alguma clareza e, espero, poucos mal-entendidos. tudo bem? não esquece disso? não esquece? e direi por precisão, isso também é muito importante, importantíssimo! desejo de precisão na escrita por precisão de franqueza, precisão de partilha. precisão de te provocar também, porque provocação é nutrição em toda relação. porque quero me provocar também! ah, só mais uma coisa: tenho plena consciência de que isso de falar do trabalho do outro é super delicado, porque é também se meter na vida do outro, e se meter em crises e dramas de processos criativos é pedir pra brigar, um inferno, um descontrole… mas não vou arredar pé, sabe por quê? acho que a gente devia era colaborar e se meter ainda mais uma nas coisas da outra. pronto. dito isto, começo pelo fim. queria saber o que será deste seu trabalho daqui pra frente. no fundo (vontade de profundezas) é essa a questão pra mim. não consigo parar de pensar que você me disse que pensava em engavetar o trabalho. isso é muito forte. me acelera o coração. penso nas conversas que tivemos sobre o que ainda te parece frágil ou incerto neste trabalho. penso na clarissa que criou essa performance em 2011 e a clarissa que pulsa em 2013. penso em como a gente faz pra manter o interesse em um trabalho artístico e, transformá-lo, ou não, junto com a gente. naquilo que sustenta esse trabalho de pé, que hoje pode ser que seja diferente do que era quando ele surgiu. penso se ele seria do tipo de trabalho que, uma vez alterado, adeus coesão, identidade e capacidade de se sustentar por si. (eu mesma insisti muito nisso, você sabe, de ir transformando um trabalho junto comigo; mas hoje começo a me interessar mais pelas criações como coisas em si, dotadas de uma lógica interna própria capaz de lhes dar identidade e sustentação. como coisa no mundo com existência própria a ser afirmada.) é um pouco nesse lugar que fico tentando perscrutar o que é esse seu trabalho afinal, o que ele coloca ou deseja colocar em jogo. (sussurro: se consigo chegar mais pertinho do seu modo de enxergar e pensar a criação, posso te conhecer melhor, e isso, claro, me interessa demais!). e se tento entender seu desejo de abandoná-lo, chego no seguinte: você poderia dizer que pensa em desistir dele porque ele não te faz mais sentido (ou as questões que ele coloca em jogo), ou porque não acredita mais na maneira como você escolheu dar forma às questões que o constituem e que talvez ainda te façam muito sentido. me segue até aqui? nessa perspectiva, seguir em frente com ele seria ou manter a forma dele e se perguntar se ela seria capaz de trazer novas questões à tona, ou se debruçar sobre as questões e permitir-se mudar a forma. deu pra entender? não, minto, acho que estou sendo dualista demais! porque na verdade acho que não acredito nisso que acabei de dizer…. um trabalho artístico talvez seja movido tanto por questões quanto pelas formas/materiais que surgem ao longo de seu processo criativo; há sempre aí uma negociação tanto quanto uma retroalimentação e uma interdependência. tanto questões quanto formas/materiais podem ser abandonadas, transformadas, recicladas, implodidas, realocadas, etc., etc., etc. tudo depende muitíssimo do artista, do momento, do contexto, dos ventos que sopram. então, desculpa, acho que me perdi um pouco na tentativa de afirmar uma análise que não dou conta de fazer. ou é porque gosto mais de habitar a dúvida do que a afirmação… então agora prefiro ficar com a ideia de que precisará negociar o que já tem como forma/material com as questões que lhe são pertinentes no trabalho. você mudou, o trabalho mudou, os contextos mudaram. fato. mas o que pra você faz essa performance continuar sendo essa coisa que você intitula “sem título”? quero muito ouvir essa resposta, muito mesmo, não se esqueça de me escrever, por favor. é seríssimo, hein? e enquanto a resposta não vem, vou fazer aqui o exercício de olhar o trabalho como coisa em si, olhar a lógica que ele próprio constrói, (claro que na minha visão obviamente afetadíssima – e sem ver problema algum nisso! – por tudo o que sei sobre você e sobre essa performance). não, perdão, na verdade nem é exatamente só isso que quero fazer. quero é te lançar meu delírio particular sobre o trabalho a partir da lógica que ele constrói pra mim. topa? bom, vou assumir que sim… e começarei dizendo que, no meu modo dever a coisa, hoje, mais do que em todas as suas versões passadas, o trabalho coloca claramente várias questões em jogo: uma inversão dos papéis espectadores-performers, uma insistência na imobilidade para mover o outro ou uma subversão de um modus operandi da dança, a construção de um lugar contemplativo, a materialização da ideia simbólica de que aquilo que me prende é também aquilo que me sustenta, o estabelecimento de um contrato de submissão entre performer e espectador e as relações de poder implícitas aí (a história do contrato sado-masoquista que você me contou, e que eu entendo no sentido de que submeter-se é também apoderar-se da situação. era por aí, né?). o que a minha projeção delirante me diz é que estas questões poderiam ser muito mais potentes se… você deslocasse a performance de uma área externa para o interior do templo da representação. sim! dentro de um teatro, palco italiano, luzes, rotundas e tudo o mais, as mesmas estratégias que você já utiliza ganhariam uma eficácia explosiva! claro que isso implicaria em repensar uma série de detalhes – importantíssimos evidentemente. mas agora me permito navegar um pouco sem por os pés em terra firme (aliás, isso da eficácia explosiva me faz pensar em uma coisa que escutei dia desses em alguma discussão sobre dramaturgia, algo como dramaturgia no sentido de “as condições que um trabalho constrói que visam a garantir a eficiência do que está em jogo”; comecei a me divertir pensando sobre isso de como encontrar eficiência dentro daquilo que constitui ou sustenta um trabalho, que vai na direção da ideia da obra como coisa em si, não acha?). olha só por onde segue a minha viagem: se a performance acontecesse dentro de um teatro, o que você diz no seu release sobre “aquilo que imobiliza para mover e aquilo que move para imobilizar” faria muuuuuuito mais sentido (pra mim, relembro!) porque a performance operaria de fato na relação habitual entre públicos e performers, invertendo seus papéis. afirmar que é possível mover o outro pela opção da imobilidade é muito mais potente num contexto espetacular e, mais ainda, de dança, justamente porque esse contexto pressupõe geralmente a relação inversa, espectadores imóveis assistindo gente que se mexe. em outras palavras, haveria maior potência porque a inversão de papéis que você propõe é baseada numa convenção que é própria do contexto da dança (sobretudo feita para palco). se a performance acontece numa área externa de caráter expositivo, como foi o caso na bienal, estabelece-se uma relação muito mais com o quadrado branco da galeria do que com a caixa preta do teatro, e então a operação de inversão de papéis não acontece, uma vez que numa exposição a relação dada já é essa, obras imóveis à espera de públicos perambulantes. entende? (rapidinho: aqui, nesse assunto da relação com o espectador, vou só abrir mais uma portinha pra dizer umas outras coisas que me atravessaram o pensamento agora mesmo. vejo muita beleza nisso dos públicos precisarem se engajar enquanto as performers precisam aprender a “espectar”. e é só assim a performance pode acontecer. percebi que como performers desse trabalho, eu você e as meninas somos na verdade espectadoras. não concorda? somos espectadoras da ação do público que nos prende aos vidros, espectadoras das reações involuntárias de nossos próprios corpos e mentes, espectadoras da ação da gravidade também. de tudo que se move ao redor ou dentro da gente, enquanto insistimos na utopia da imobilidade. não acha que “espectar” poderia ser assumidamente nossa ação neste trabalho? te faria sentido usar isso como instrução para as performers? intuo que talvez algumas coisas ficassem mais claras como motivação interna pra gente. intuo… fecha a portinha). outro ponto é a sua relação com o release do trabalho. sei bem o quanto o ato de nomear é importante pra você. fica evidente na sua escolha do título, tanto quanto no release que eu sei que você gostaria que tivesse saído no programa da bienal, algo novo que gostaria de ter experimentado, mas que foi estranhamente censurado (que pena!) pelo sesc. se você se propõe a publicar (no sentido de tornar público) um release como “sem título/sem release/duração indeterminada”, é porque de novo está lidando com outras convenções próprias de um regime espetacular, certo? o seu release me faz pensar, por exemplo, na obrigação do artista em nomear e explicar seu trabalho e em determinar uma duração conveniente às práticas e ao mercado vigentes. agora imagina só um release desse sobre cada poltrona de um teatro? seria incrível! me provoca! gosto desse gosto de ironia. e então te-me pergunto: … acha possível colocar essas coisas em jogo fora do espaço do teatro? … não acha que talvez questões que te são importantes se dissolvam por conta da performance acontecer num espaço outro regido por outras convenções? ah, e tem também a história do investimento na imobilidade, ou no silêncio, ou no “nada”, que esse trabalho faz emergir pra mim: visualizo um teatro cheio de gente e “nada” a acontecer. pagava pra ver! ai, e ainda mais uma coisa! nem preciso dizer que se a performance fosse dentro de um teatro você não enfrentaria problemas (tais como os que aconteceram na bienal) relativos a horário e espaço “brochantes”. digo isso sobretudo no sentido de como essas variáveis acabaram determinando um público que não estava ali para ver o trabalho, mas de passagem. o problema pra mim é que essa performance PRECISA ser vista do começo ao fim para construir seu sentido interno, para ser acontecimento e não entretenimento. pelo menos é assim que eu a vejo. da mesma maneira, as variáveis “brochantes” determinaram a impossibilidade de uma visão com maior distância e respiro em relação à imagem que se formava pela materialização da ação das pessoas no espaço – naquele espaço restrito e poluído de múltiplas informações em que se transformou o saguão do sesc, o que nos sobrou foi ficarmos espremidos atrás da exposição fotográfica, nós performers e os públicos… não devia mesmo dar a menor vontade de ficar ali… e aí vem outro problema! no momento crucial em que pedimos ao público que deixem de nos prender nos vidros pois já há fitas suficientes a nos sustentarem, no fundo devolvemos a eles seu papel de espectadores. e deveríamos então compartilharmos todos da mesma longa espera sem previsão de chegada a algum lugar ou resultado… é justamente aí que o distanciamento do público dos vidros se faz fundamental! sem distanciamento, o público vai-se embora, e este elo importantíssimo da dramaturgia do seu trabalho se perde, impedindo a construção de sentidos e afetos… … mas continuando a montanha-russa que está virando esta carta, volto à uma visão mais geral do meu delírio – consegue perceber por onde meu raciocínio viaja? pensa só em como dentro de um teatro os públicos poderiam andar pra lá e pra cá, cruzar a quarta parede e verem a coisa acontecendo bem de pertinho, poderiam se engajar na ação de prender as performers, ou contemplarem o que se passa sentados, ou de pé do fundo da platéia, ou, ou, ou. não te parece interessante? pra mim é hiper tentador… stop! paro aqui (de novo intuição), acho que está feita a provocação! como pode ver, sigo sempre a mesma pessoa confusa, com raros lampejos de claridade. mas digo que foi muito boa a experiência de partilha! já me sinto um pouco aliviada, sabia? mesmo se aqui dentro ainda reste uma pontinha de culpa por ser mais uma vez ser tão intrometida naquilo que você faz… mas não consigo me conter! por que, no fuuuuuuuuuuuuuundo (desejo intenso de profundezas), o seu trabalho me provoca a refletir muito, muito, muito. e isso é tão bom! não acha? espero que algo do que te disse aqui te faça algum sentido. e te instigue de um modo potente. e, sobretudo, que te impulsione a não abandonar este trabalho
que acredite é capaz SIM de mover e MUITO !
com amor e em-moção,
pp.
jardin des plantes, montpellier
05.10.13
Paula Pi é artista da dança, da música e do entre. desenvolve seus próprios projetos desde 2010, sem deixar de lado as parcerias. de molho, atualmente cursa o master e.xe.r.ce (FRA).