por Bruno Freire a partir de Aventura entre Pássaros de João Saldanha.
Não vou citar Agamben para falar do contemporâneo. O livro está sempre ali na cabeceira para que você possa consultar e fazer a sua citação na mesa de bar e fazer-se eloquente. Muito se utiliza Giorgio Agamben para justificar uma certa obscuridade da fala e de alguma forma disfarçar uma incerteza de eixo curatorial. Afinal, eu, o cego, não enxergo a clareza das trevas que só eles vêem. Aguarde, pois um dia saberemos <Jamais>.
Quando saio da Aventura entre pássaros de João Saldanha, me confronto com os seguintes paradigmas: por que existe uma exigência no ar em ser ‘do contemporâneo’? Qual o medo do pensamento moderno? É possível desenvolver um pensamento moderno hoje? Nós já fomos modernos? É realmente possível uma dança congelar-se nos anos 90? E por que uma dança moderna ou clássica precisa ser considerada contemporânea? E por que não inventamos outros nomes para diferentes danças?
All Art Has Been Contemporary, 1999, Maurizio Nannucci.
Reanectment é cool. Reenectment é como se fosse uma habilidade de fazer como se faziam antes e o interessante é que eu não estava lá para ver. Mas isso, por si só, não justifica uma remontagem <mas sim>. Companhias internacionais refazem seus espetáculos primordiais também em um sentido histórico e educativo. Informar as gerações de que um dia existiu isso e aquilo e aquilo outro. Tornando a peça um acontecimento vivo. Nela posso observar as influências, repercussões formais, conceituais e estéticas nas companhias que surgiram depois dela. Quem não viu os Dr. Martens do Wim Vandekeybus se replicarem nos espetáculos do Cena 11 <nem me lembro se era o mesmo coturno, mas parecia muito>
No entanto, um artista hoje, investigar uma linguagem que desmonta e remonta pensamentos e técnicas modernistas e clássicas pode ser visto como démodé, velho e/ou ultrapassado <neoclássico?>.
João Saldanha parte do livro A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais de Charles Darwin misturando e revisitando o clássico O lago dos cisnes, o qual tem como uma de suas características um caráter lúdico. Um clássico da dança, assim como outros tantos clássicos pautados em narrativas e pantomimas.
João parece criar nos figurinos, na primeira cena do espetáculo, uma espécie de narrativa/panorama de roupas utilizadas em diferentes danças de diferentes épocas, sem uma ordem cronológica óbvia. Mas é como se cada pássaro que entra no palco da esquerda para a direita se referenciasse a uma dança. Detalhes nas roupas que remetem ao jazz, à Cunningham, ao clássico, ao moderno, ao descompromisso do contato improvisação, a peças infantis, a penas de aves, etc.
A movimentação dos pássaros é da ordem do verossímil e não da mimética. Os bailarinos não querem imitar/mimetizar a natureza, mas, sim, criar uma outra realidade/natureza em cena. Onírica. Poética. Não se trata de representação, mas de criação de códigos reconhecíveis ao público e são, justamente, esses códigos que permitem o espectador, se lhe interessar, acompanhar o desenvolvimento de uma linguagem que vai ser trabalhada e retrabalhada durante todo o espetáculo.
Lembro-me das cartas de Noverre, onde muito se discutia, ali, no balé de corte francês, conceitos que surgiram dos códigos e da prática de uma elite cujos assuntos se reverberam nos códigos da dança até hoje. <Evolution, baby> Ali está presente uma discussão de, por exemplo, se a arte deveria ou não imitar a natureza. E as pantomimas, as ações do balé vão nessa direção, entre se afastar ou não da imitação e/ou criar uma verossimilhança (uma realidade inventada que cria seus próprios códigos e significados, compartilhando esses códigos com o seu espectador, que aprende enquanto assiste ou quanto mais assiste).
João Saldanha inventa uma dança, às vezes utilizando deslizamentos reconhecíveis e simples para quem faz/fez alguma aula de dança. Mas aproxima-se de Darwin para criar suas pantomimas de acordo com os movimentos de animais, misturando a técnica e uma verossimilhança que parte do corpo e da natureza. Essa apropriação é literal. É explícita. Assume o que os gestos metaforicamente representam. Apontar o dedo indicador quer dizer não. Apontar o ‘dedo indicador para o público’ é uma arma, mas também não é uma arma, é um quadro, mas eu não vejo um quadro, é um telefone, que é também hangloose. Parece que as velhas pantomimas estão sendo revistas e revisitadas. Revisitar a pantomima a partir da movimentação de pássaros das mais diferentes formas se movendo pelo palco, sapos, garças, aranhas, caranguejos… Nos soa ainda como representação demais. Teatrinho <mas não>. João Saldanha estabelece uma conversa com seus pares em uma linhagem de coreógrafos. Ele remonta poeticamente a evolução de uma dança, somando-se a isso, a experiência e a história de dança do próprio coreógrafo, residente no Rio de Janeiro.
Assistir essa aventura é assistir a evolução de diversos códigos da dança. Os pássaros são um pretexto para contar uma aventura em dança, literalmente.
Assistir ao trabalho de João Saldanha é a diferença entre observar uma conversa e/ou um diálogo. Conversa se faz com muitos, diálogo é um para um.
Enquanto isso, lá atrás, no fundo do palco, o vento sopra a vela do barco de uma história contínua.
O vento leva.
Para onde?
Eu não sei dizer.
Não sou tão contemporâneo assim.