Por Luis Ferron entorno de What the body does not remember, de Wim Vandekeybus e Cia. Ultima Vez.
Como escrito na página vinte e cinco do encarte da Bienal Sesc de Dança 2013, o ano era 1987 e Win Vandekeybus aos vinte e três anos de idade criava a sua primeira obra frente a companhia belga Ultima Vez. Foi em oitenta e sete ainda que aqui no Brasil acontecia o Carlton Dance Festival, um evento de altíssima relevância, se não para o contexto da dança cênica nacional, foi para mim. Eu, um mero aprendiz das artes da dança que neste mesmo ano, também aos vinte e três de idade, completava aproximadamente quatro, como praticante e candidato a carreira de dançarino e coreógrafo.
Lembro que a curiosidade acerca do pensamento de outros criadores sempre foi uma das minhas características e tenho certeza, continua sendo. Mesmo hoje quando assisto a uma obra fico curioso em saber o que aquele coreógrafo pensa sobre o mundo e a arte e ao mesmo tempo como ele organiza tais equações cenicamente. Fico feliz quando uma obra consegue me deslocar, me tirar do status quo, me direcionar para um lugar estrangeiro onde as incertezas corroam as minhas certezas e me lance na direção de novos encontros, novas descobertas, possíveis contágios e novos fazeres.
Ao assistir uma nova obra e, sou surpreendido por inéditos, a partir do olhar de um outro coreógrafo, acabo refém da curiosidade e durante algum tempo fico remoendo sobre as suas escolhas. Entre outras, são escolhas que envolvem o tipo de discurso corporal, materiais complementares e ou extensores do corpo, linguagens híbridas, enfim, quando essas escolhas promovem uma resultante bem equacionada e a obra consegue me deslocar para outro território, um outro do outro altera o meu próprio. Algo como um clic chama a atenção e me aponta à existência de outros caminhos para lidar e dialogar artisticamente com o mundo. Quando isso ocorre sou tomado por várias questões: Por quê ele utilizou esse material e não aquele? O que o motivou a essa escolha? O que ele pensou para fazer essa escolha? Por que não pensei nisso e a partir do quê e de onde estou pensando minhas escolhas? Como se deu essa composição? Por que essa organização se deu nessa ordem? São questões que me impulsionam na direção da inquietação e sustentam o desejo de ampliar minhas referências e por sua vez as percepções abarcando novas possibilidades. Ressalto, não me refiro a modelos mas, a encontros felizes que despertem novas possibilidades.
Foi com essa curiosidade que assisti a todos os espetáculos apresentados no I Carlton Dance Festival. Veja, esse evento trazia como slogan a seguinte frase: A Dança de Vanguarda, do francês avant-garde. Essas obras, mesmo inseridas no movimento em ascensão da dança contemporânea mundial, chegaram no Brasil com a responsabilidade de se apresentarem como referências da dança de vanguarda no mundo, ou seja, uma dança que está na frente do seu tempo e portanto artistas e obras precursores e pioneiros nesse segmento cultural. Tenho que admitir que naquele momento fiquei bastante impressionado com tamanha novidade e, considerando a época e meus olhos de aprendiz, posso dizer que as obras ali escolhidas fizeram jus ao título de avant-garde.
Eram obras que apontavam tendências a partir das singularidades artísticas, fossem pelas maneiras de utilização do corpo como as apresentadas na obra de Michael Clark com a deformação das técnicas do balê clássico em pró do seu discurso ímpar; fossem pelo grupo Momix com seus corpos desprovidos do compreendido até então como dança com a intenção de interagir com elementos outros, fazendo destes suas extensões, tais como: esquis, esfera construída com tubos de ferro, luz e sombras, entre outros, na busca de uma outra expressividade que se revelava através da construção de efeitos e imagens inéditas. Fossem pela intensidade dramática e teatral de Carolyn Carlson ou pela cinética e virtuose de Molissa Fenley, essa primeira edição do Carlton Dance Festival, feito um tsunami, me tomou e determinou muito do como eu poderia criar dali para frente. Como um aprendiz atento, meu desejo por novas possibilidades fora despertado e remexia tudo aquilo que até então era concebido como verdades do meu mundinho ou, mais especificamente, aquele compactuado e aderido à contemporaneidade da época.
Talvez seja essa a questão: um corpo precisa se deixar ser sacudido e frente ao inesperado, ser sucumbido por uma certa amnésia provisória no sentido de descolar-se de si mesmo almejando um outro possível. Contrário a Wim Vandekeybus, talvez o que o corpo não lembra é justamente disso, de outros possíveis quando imerso numa avalanche, tão somente aderido a tantos outros sem tomar distâncias, dissociações e perfeitamente harmônicos aos aspectos da sua época sem conseguirem enxergar a contemporaneidade que os envolvem e dá forma.
Não presenciei a estréia de What the body does not remember, a qual deve ter causado grande frisson para época, entretanto, agora em 2013, ao assisti-lá não sou pego por grandes novidades mas antes mesmo de despejar qualquer tipo de crítica nesse sentido, coloco a mão na cabeça e penso: perai, estou presenciando uma obra que atravessou um quarto de século, vinte e cinco anos com inúmeras ocorrências, um novo mundo desabrochava em descobertas, experiências e criações nas mais diversas áreas e, mesmo assim, essa obra consegue manter o frescor frente a tantas outras intituladas inéditas? E para eu pensar mais um pouco, percebi que essa companhia e obra se apresentam com a competência daqueles que se dedicam e zelam pela integridade de ser e estar em dança e ainda com muito a dizer para a nossa atual contemporaneidade.
Eu poderia discorrer sobre inúmeros recortes contidos nessa obra, entretanto, o que ainda me toma é aquela mesma curiosidade e, nesse caso, a curiosidade de imaginar o que Wim Vandekeybus pensava sobre o mundo e a arte nesse período dos oitenta ao ponto de torná-lo um estrangeiro da sua própria época, um contemporâneo anti-aderente capaz de descolar-se do seu próprio tempo e, mesmo nos dias de hoje, continuar reconhecido pela sua trajetória e destacado pela sua autoria sui generis.
Talvez seja isso o que o corpo não lembra: de conseguir ser singular frente a pluralidade com a sua potência criativa desperta, mesmo inserido num amontoado de coisas que a vida prega como verdades.
Continuo com a minha curiosidade aguçada!
Luis Ferron é artista da dança desde 1983. Sua principal característica é o transito entre pluralidades culturais e corporais como dispositivos de criação.