Por Caroline Moraes, entorno da exposição Still_Móvil, de Manuel Vason e a Rede Sul-Americana de Dança.
A Dança estava congelada. Paralisada na eternidade, no meio do caminho de um movimento, pra sempre não-ação. A Dança havia viajado muito, muito mesmo. Cruzou o mundo, para o continente mais novo, pulando de país em país e quando chegou onde todos diziam ter mais ginga e rebolado, ela foi congelada. Pega de surpresa, na hora que fazia uma careta, pintada de azul, sentada em uma cozinha rústica, um pouco abandonada. Não contava com a feitiçaria daquela máquina que ganhava vida para congelar a vida ao seu redor. A Fotografia pegou a Dança num pulo.
Por muito tempo, as lentes da Fotografia ficaram observando a Dança passar. Hora sozinha, hora em grupo, hora nua, pendurada nos lustres fazendo graça, andando pela rua a noite, na meia luz. A Dança buscava seu lugar, em qualquer espaço que lhe coubesse. Queria mover, encontrar sentidos. Seguia sua busca, conhecendo gente, lugar, angustia, pesquisa e diferença. Ela percebia a obervação da Fotografia, fingida, disfarçada. A Dança gostava de ser olhada e, sempre que podia, lançava olhares, sobre os ombros de seus parceiros, convidando a Fotografia para a próxima música.
Obcecada, a Fotografia queria a Dança pra ela. Queria ter aquela riqueza de luz e sombra, de presença e ausência, tudo só pra ela. Ficava distante, registrando cada pequeno movimento de músculo. Aguardando o momento da investida.
Então, esse dia chegou. Seguindo passo a passo a Dança pela America do Sul, a Fotografia já sabia o que fazer. E quando a Dança subiu na pedra mais alta e contorceu o corpo nu de olhos fechados, entrelaçando os dedos os pés, ao som do vento que era a sua música, CLIQUE. A Dança ouviu o tiro e tentou fugir, escondendo-se na sombra de uma mesa, atrás das bitucas de cigarro, disfarçada no olhar triste da mulher, de baixo das correntes pesadas de ferro. Não entendia porque estava sendo atacada. A Fotografia estava apaixonada, mas seu único jeito de amar era capturando suas imagens e guardando tudo para si.
A Dança ainda relutou, buscando adaptar-se. Afinal em uma sequência bem rápida, ela ainda podia ser movimento. Mas a Fotografia tinha essa mania desagradável de pensar quadrado e a Dança não conseguia mais fugir daquelas quatro paredes. Estava lá congelada, com a mão espalmada de baixo da água que um dia havia sido corrente.
Paralisada, a Dança teve muito tempo para pensar num jeito de sair dali. Seu lugar era no mundo, mexendo com tudo e não congelada para os olhos de um só. Então, teve a ideia. Chamou a Fotografia e disse que se a libertasse uma única vez, faria a mais bela apresentação, apenas para as suas lentes. A Fotografia, vaidosa e completamente seduzida, não resistiu à proposta de ter imagens únicas, exclusivas, que somente ela poderia ter visto e aceitou, uma única vez, libertar a Dança.
Posicionou-se no melhor lugar e mandou o espetáculo começar. A música entrou primeiro. Um tango. Uma luz acendeu sobre o corpo no centro do palco. A Dança estava parada, de pés juntos e braços relaxados ao longo do corpo. A Fotografia estava ansiosa pela suas imagens novas e únicas. A música forte pulsava e a fazia querer disparar. Mas a Dança não dançava. Ficava ali, apenas respirando, parada, com um olhar provocante, um leve sorriso no rosto. A Fotografia estava furiosa, mas também excitada. Queria ir lá e rodopiar com a Dança, mas tinha medo de perder alguma coisa enquanto se mexia. Então ficou ali, esperando.
Parararan Pan Pan, a música acabou e as luzes apagaram de repente. Tudo ficou completamente escuro. A Fotografia não via nada, mas escutou passos leves e rápidos. Disparou um flash para iluminar o lugar. Mas já era tarde demais. A Dança havia escapado.
A Fotografia tentou correr atrás dela, mas só conseguiu um borrão colorido, que mudava de direção a cada disparo. Seu coração partido entendeu que, por querer tanto da Dança só pra ela, ficou sem nada.
Até hoje, a Dança e a Fotografia se encontram pelo mundo e flertam num balé respeitoso, trocando movimentos e olhares, se esbarrando de vez em quando, sentindo um calor breve na pele. O limite imposto foi a liberdade da Dança ir e vir sem ser jamais capturada e presa novamente e a Fotografia poder, vez ou outra, roubar um pouco desse movimento para ela, dando sua interpretação e guardando para os seus olhos o sentimento que ver a Dança lhe dá. Ainda que o começo tenha sido descompassado, até que essas duas conseguiram viver, de certa forma, felizes para sempre. Ainda que insatisfeitas e numa busca eterna pelo que virá a seguir.
Caroline Moraes é publicitária e optou por ver o mundo através das lentes da sua câmera, capturando apenas o que acredita que lhe pertence.
PS: As fotos que ilustram o texto são recortes feitos por Caroline Moraes, de fotos produzidas por Sergio Valenzuela, Carolina Herman, Marcelo Evelin, Giselle Rodriguez, Lorna Ortiz em colaboração com Manuel Vason.