para TUCANDRÉ
Eu precisaria de uma epígrafe para começar esse texto, mas ainda não sei d’onde ela poderia vir. Talvez ela apareça até o final desse parágrafo que, também, não sei qual será o tamanho. Ouço música, ela sai das caixas de som, da estante da minha sala, atrás de mim; seu andamento não se relaciona com esse texto, opera no sentido oposto daquilo qu’eu preciso escrever. Ela tem notas curtas. Acontece em tempos de repetição que, de tão pequenos, criam uma espécie de rede de ansiedades na cabeça; só a força de um exercício pode expandir essa percepção, o de pensar. Entrei no meio de uma composição, na sua extensão mais larga; quase impossível ver aquilo tudo em cena; mas eu vi, a coisa estava lá e, quanto mais ela se mexia, mais se desintegrava. A coisa se orientava pela força, saindo do chão. Era como s’eu ouvisse, por muitas horas, uma pessoa no fundo d’um poço, gritando, uivando, se debatendo; não para ser salva, mas para estar presa, sufocada, mal digerida, sabendo que não iria apodrecer; não estava esquecida, estava consigo mesma e com quem a pudesse escutar. Sim, era o corpo d’uma coisa que sabe o que quer fazer e o seu espaço tem essa dimensão: de saber o que quer fazer. Deixando os exemplos para quem precisa, porque as pessoas raramente existem ao seu lado; o raio de distância entre uma e outras é infinito e na diagonal. Algumas muitas pessoas fogem dessa sintonia, a imaginam tão distante que só os que acreditam em Deus poderiam ter algo para se segurar, rezar, orar, entrar em meditação, incorporar, psicografar ou o que for e de pé. Só assim, aquela ausência, que um dia foi chamada de estranha, poderia se sentir em casa. Mas, ela nunca vai se sentir em casa. Porque não interessa. Porque a vida daquela coisa não precisa do significado de conforto. Para ela, a ideia de conforto avisa a coisa que dói na coisa até sair da conversa; desaparecer numa surra, num bafo, numa cuspida, na vulgarização do sexo, na informalidade d’uma penetração. É assim qu’ela pode sumir e, ainda, será sempre uma dúvida, porque a coisa quer mais, para evitar entrar em acertos, em papos nostálgicos sobre o que não existe, sobre a falta do que quer que seja, porque a coisa é completa no seu grito, na sua forma de andar e olhar pra dentro de quem a olha, sem piscar, sem se emocionar (se você se emociona perto dela, vai perder o respeito ou o qu’inventaram sobre isso). A coisa vive sem perversidade, na sua forma inaugural de viver aquilo que vive como é, sem comparação, sem olhar por muito tempo pelos retrovisores, sem querer. Quem olha para a coisa deixa de olhar pra dentro, s’esquece e s’absorve daquilo que poderia fazer; talvez, gostaria, passaria de longe, evitaria, iria até o inferno para questionar a extensão de sua liberdade. Quem a olha daqui, não tem tempo para visualizar aquilo que é o seu corpo, não consegue entrar no seu espaço pequeno, meia boca, mais ou menos, cheio de amor. Quem a observa se perde ou se chateia. Quem se chateia, vai embora; mas a coisa persegue sua ideia de alívio, na mesma direção, no percurso de quem se retira, cheio de si, de quem acha que desistiu, de quem s’imagina longe daquilo que está por ali, por dar às outras formas de vida uma importância d’inferioridade. A coisa não se cansa, não procura referências ou férias. É abundante, ubíqua, difusa, evita irritar o movimento que, por vezes, você e eu aprendemos sobre a morte. Ela atravessa as entidades do sofrimento, aborrecida por uma sonoridade que amplia a densidade da emoção, seu volume. A extensão de seu corpo vai sempre um pouco mais além do que ela própria s’imagina. Ela s’acaba e recomeça; então, o paradoxo. Se recomeça, não pode dizer que tenha sido um fim, nem que tenha sido breve. A coisa é. Em si. Cheia de mil outras coisas que de outras mil coisas se fizeram mais de milhares de outras coisas para além de suas próprias coisas. Se ela se grita, já não se pode ser mais ela, mas o eco daquilo que foi para o além. É de lá que ela nunca veio e é para lá que nunca vai voltar; porque a coisa está aqui, na sua maternidade, desmetaforizada, nua, intricada. No exercício de sua sabedoria em lidar com os materiais que fogem do que está petrificado, ela s’aplica para fora de si, desse universo que se forçou a virar um corpo, integrando outros sinais na extensão da sua pele, para que se torne visível aquilo que, sem as suas presenças, estaria esquecido, mitificado. A coisa é, para além de si mesma, a própria coisa, seu pensamento. Ela tem a vida cheia de desejos; por vezes, se transformam em emoções, n’um nível de complexidade fora do conhecimento atualizado. Ela s’altera dentro dos estados mais sórdidos das canções e dos eventos em que a civilização s’encontra e s’enverga, contra ou a favor, dentro ou fora, isso ou aquilo, de um jeito ou de outro, de jeito nenhum, assim ou assado. Ela cria o fundamento dos para-raios, estupidamente gelada ou a seco. Sem tempo para coisas mornas que, no velho testamento, disseram que poderiam fazer vomitar; nesse caso, nem se esforça, essas coisas não fazem sentido para quem vive na rua, de dia e de noite. Ela não s’ilude, mas pode dar umas enganadas em quem acredita que de tudo já entendeu um pouco. E, faz disso, um motivo para beber, para sair de casa e invadir o espaço do outro com ternura. A coisa não precisa de epígrafe ou epitáfio. Ela está por aí.
Wagner Schwartz [www.wagnerschwartz.com] Trabalha com arte contemporânea, dança e literatura, entre São Paulo e Paris. Seus projetos problematizam as relações artísticas e seu percurso.